sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Amigos e Pescada Branca


 Por Márcio Dison                     (Para Ambrósio Marques)

  Sempre fui um amigo perfeito. Daqueles chiclete, de despertar ódio em namoradas. De sair de casa com chuva, caminhar dois quilômetros, comprar a carne e a cerveja para fazer um churrasco sob um guarda-sol em residência alheia. Tão mão aberta quanto impertinente e por vezes, desleixado com os presentes recebidos dos amigos.

   Aos 25, ganhei o álbum branco dos Beatles mas, como nunca fui fã dos rapazes de Liverpool, deixei o mimo num canto da casa e, a menor falta de dinheiro, empurrei-o à loja de usados do amigo que tinha dado o presente.

   Aos 40, a vingança - recebi o álbum de volta com uma dedicatória com gosto de espinafre. Para não cometer nova gafe, mumifiquei os Beatles no fundo do guarda-roupas. Presentes são marcos que às vezes ficam cravados na memória , partes de histórias que nunca esquecemos.

   Quando ganhei meu primeiro relógio, já em idade adulta , jamais imaginei que um objeto que sempre detestei ficaria tão literalmente gravado em meus pensamentos. Marca Cartier fazia saltar aos olhos a falta de verdade. Usei-o por meses até que, belo dia, um par de mãos operárias entrou em minha casa para usar o banheiro e acabou por surrupiar o presente paterno.

   Há lembrancinhas que se eternizam até o final de nossos dias. Aprender a escrever, por exemplo, envolve presença de cada um de nossos mestres. Devo a uma charmosa mulher chamada Tanira Piacentini e ao gaúcho de Ibirubá Ayrton Kanitz o prazer da escrita. E ao manezinho Cabrinha Brito minha primeira oportunidade para demonstrar uma capacidade latente.

   Sempre fui de poucos amigos. É mesmo complicado tê-los e mantê-los depois que se entra no rol dos homens sérios , quando a família retira teu tempo e é mais urgente ser amigo de uma filha. Os raros amigos que mantenho são medidos em importância pelos presentes que são capazes de dar, contrariando seus medos e ódios, sua idiossincrasias. Fiquei exultante quando recebi uma camisa do Avaí de um amigo Figueirense verde de raiva. Não há maior demonstração de compreensão do que é ser amigo.

   Mas o mais marcante mimo destes anos de vida foi com efeito um peixe. Isto mesmo! Não é brincadeira. Uma pescada branca. Estava na festa junina de uma casa pobre mas cheia de vida na Barra da Sambaqui. Nunca tinha sido algo além de um colega distante, quem sabe um parente às avessas do dono da casa. Mas naquela noite conversamos como nunca. Foram horas em que estreitamos todos os laços que jamais tínhamos conseguido aproximar em muitos anos.

   Num arroubo, ele deixou-me de queixo caído ao voltar do freezer com uma pescada branca de pouco mais de dois quilos na mão. Fiquei boquiaberto. Ensinou-me a ensopá-la. E conversamos por mais algumas horas e nos encontramos por mais algumas vezes até que o coração - esta bomba-relógio que administra nossas vidas - levou meu amigo para um lugar que não sei aonde fica mas tomara seja mais fértil em novos amigos.

   Nunca me despeço dos amigos e, claro, não me despedi dele. Prefiro os encontros que, por raros, precisam ser saboreados como pescadas brancas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário