quinta-feira, 10 de abril de 2014

MEIGA *

   
Iniciación al aquelarre - Sérgio Vázquez
Por Janer Cristaldo

   Acabava o inverno em Madri e a primavera chegou vestindo árvores e despindo mulheres, a despedida das neves e o emergir do verde parecia ter contagiado até mesmo Moscou, os russos liberavam o aeroporto da Praça Vermelha ao Ocidente. Era primavera em Madri e eu, incauto, percorria a Avenida de los Reyes Católicos, estas generosas majestades que oficializaram na Espanha me ofício ancestral. Era primavera, dizia, e o sol de Castilla, la Vieja, perfurava o verde e as vestes. Voavam tuas folhas ao sabor do vento e a luz radiografou tuas formas.

   Não pude deixar de evocar Gorbachov: glasnost. Transparência. Mathias Rust sobrevoava inconseqüente qual andorinha a tumba de Lênin e tu adejavas, impune, pela avenida dos Reis que tentaram, inutilmente, exterminar tua raça infame. Entraste no bar de mansinho, subreptícia, bruxa clandestina em um missa de um domingo cinzento da Idade Média. Inquisidor experiente, em teu jeito de andar vi desde logo teu meigallo. Muitas outras te cercavam, tivesse eu vinte anos me entregaria a todas de olhos vendados. Mas já não tenho a insciência dos vinte, cristiana hechicera, e tremi: “é ela, é ela e nenhuma outra”.

   Chegaste no inverno e o frio te ocultava as formas, como ocultaria do olhar de Rust o alvo de seu desejo. Se o frio costuma roubar aos olhos o corpo, poderes não tem para roubar dos olhos a picardia. Te julguei míope e procurei aproximar-me, de bem perto os míopes vêem melhor. Errei feio: me viras de muito longe. Mas já era tarde para voltar, permanecera tempo excessivo exposto à tua aura maléfica, et le voilà o douto Inquisidor lambendo humildemente o dedão do pé da bruxinha oriental.

   De que legiões do báratro – perguntei-me, viria aquele ser, hibernal e infernal, à primeira vista inofensivo? Das legiões de Espanha não poderia ser, meus pares não deixaram bruxa viva nesta geografia. Lembro-me como se fosse hoje. Bastava jogar-vos nas águas de um rio, mãos e pés amarrados. Se a água, elemento puro, vos recusava, era evidente: éreis bruxas e vos queimávamos. Se o rio vos aceitava e afogava, provada estava vossa inocência. Sem precisar jogar-te no Manzanares, deves ter sentido meu olhar queimando tua nuca.

   Foi Deus quem te denunciou. Já imagino tua gargalhada herética: “qual deus entre os deuses quer, com tantas ganas, meu pescoço?” Não foram os gregos nem os romanos, nem os ocidentais ou orientais. Maga imemorial, não deves ter esquecido as intuições daquele alemão que morreu louco: sim, os deuses gregos morreram, morreram de rir ao saber que no Ocidente tinha um que se pretendia único. Jogo de palavras de Nietzsche, bem sabia ele que Deus é um só e é o Sol, isto já o sabemos desde os chineses e hindus, persas e egípcios, mediterrâneos e mesopotâmicos.

   Sendo Sol deus diurno e delator, ao descer a noite resta ao Inquisidor um único recurso: despir a presumível bruxa, expondo-se a mil malefícios, para saber se sob suas vestes se esconde alguma essência maligna. O Inquisidor, mesmo experiente, hesita: e se, ao investigar o feitiço, se enfeitiça? Adelante, e seja lá o que Sol quiser.

   De que regiões do inferno, me perguntava, viria aquele súcubo travestido em anjo míope? Não vinhas de legião nenhuma, nem de inferno algum, pelo menos por tuas declarações iniciais, ante de submeter-te às práticas mais eficazes de meu santo ofício. Eras vizinha de continente, cidadã da República Oriental del Uruguay.

   Nos aquelarres, te chamam La Negra, não é assim? – perguntei-te, pressionando esta parte indefesa das meigas, a nuca. Como é que sabes disto? – reagiste surpresa. Ora, anjo decaído, bom inquisidor não se engana. Bruxa, mentes o tempo todo, jamais vi alguém mentir tanto. Tenho 25 aninhos, disseste, cretina. Podes enganar o século, mas não a mim. Terás, no mínimo, uns dois mil anos e pico largo. Sou feia, vesga e o dedão de meu pé é um horror.

   Três mentiras mais, maga. Se és ou não linda, isto a ti não compete julgar. Quanto a teus olhos, sei que jamais olham o que parecem olhar, uma evidência a mais de que humana não és. Já quanto ao dedão, sou eu quem decide se é beijável ou não.

   Gaúcho, não sou de lamber botas, menos mal que naquela noite estavas descalça.

   Inesperada, inesquecível, Inês querida: na ausência dos poderes que me conferiam a Santa Sé, nesta Espanha social-democrática, para entregar-te ao braço secular e à fogueira, eu, INQUISIDOR, te condeno, MEIGA INFAME, a jamais ter amigos: todo mortal será teu enamorado.

* Méson das Meigas, Madri, 25/06/7
Meiga, em galego, é bruxa. Meigallo é feitiço. Aquelarre é reunião de meigas.

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